“somente hoje não sinta raiva e não fique zangado”,
“somente hoje abandone suas preocupações”, “somente hoje agradeça suas
bênçãos, respeite seus pais, mestres e os mais idosos”, “somente hoje
faça seu trabalho honestamente”, “somente hoje, mostre amor e respeito, e
seja gentil com todos os seres vivos”.
O que é o ki? Praticantes experientes de diversas artes orientais,
instrutores e mestres dizem que o ki é a energia vital, algo que
sustenta a vida em todas as suas formas. O que determina a saúde de uma
pessoa, por exemplo, é o fluxo natural do ki. Quando essa energia não
flui, a pessoa fica fraca e adoece com facilidade. Mas não são só os
seres vivos que têm ki. Fala-se no ki do ar, da água, do solo e da luz
solar — a natureza tem um ki que se manifesta no fluxo dos rios, na
mudança das mares, nos ventos e nas tempestades.
A partir dessas
idéias surgiram práticas que têm o objetivo de dominar o ki e utilizá-lo
no desenvolvimento da saúde, da força física e do equilíbrio físico e
mental. Algumas práticas vão além e propõem-se a desenvolver e utilizar o
ki na cura de doenças, na defesa pessoal e mesmo em práticas
paranormais.
Muitas pessoas esforçam-se para entender e explicar o
que é o ki. Uma das explicações mais comuns é aquela que diz que o ki é
a coordenação entre energia física e energia mental; algumas pessoas
dizem que o ki é precisamente essa coordenação, o que vai além da
simples soma de energia física e energia mental. Uma decorrência dessa
explicação é a idéia de que o ki é intenção e vontade. Uma criança que
não quer ser tomada no colo, por exemplo, torna-se mais pesada por causa
de seu ki — seu corpo e sua vontade se coordenam de forma a não ser
erguida do chão. No Aikido, uma mulher pequenina é capaz de neutralizar o
ataque de um brutamontes através da união de sua atenção, sua vontade e
seus movimentos.
Já se tentou associar o ki à eletricidade, ao
pensamento e ao poder psiquíco. Cada uma dessas associações diz algo
sobre o ki, mas todas as explicações somadas ainda parecem estar longe
de defini-lo. A despeito da falta de explicações e das imprecisões
usuais, muitas práticas se baseiam na existência e na possibilidade de
utilizar o ki para um determinado fim — mais ou menos como um pintor
aprende a misturar tintas e pintar um quadro, embora não saiba dizer o
que faz com que o azul seja azul.
Uma dessas práticas é o Aikido,
arte marcial japonesa criada em meados do séc. XX por Morihei Ueshiba.
Aikido pode ser traduzido — com o perdão dos puristas — como “o caminho
[do] da energia [ki] com harmonia [ai]” ou “o caminho [do] da unificação
[ai] das energias [ki]“. No Aikido diz-se que o praticante torna-se
invencível na medida em que desenvolve o ki, o que permitiria inclusive
antever uma agressão e neutralizá-la com segurança, rapidez e
eficiência.
Outra prática que faz uso do ki é o Reiki — que pode
ser traduzido como “energia [ki] espiritual [rei]” ou “energia [ki]
divina [rei]“. Através de invocações elaboradas, da inspiração divina e
de uma vida ascética o praticante (reikiano) torna-se capaz de usar o ki
para curar doenças. O ki é aplicado pela imposição das mãos em pontos
específicos do corpo do paciente. A prática do Do-In, a Cura Prânica e
diversos tipos de massagens orientais funcionam de forma semelhante ao
Reiki.
O Tai Chi e o Qi Gong (Chi Kung) também são artes que se baseiam no ki, com algumas diferenças nas técnicas e nos objetivos.
O
que me levou a escrever sobre o ki foi a percepção de que existem mais
elementos comuns entre essas artes além do próprio ki. Isto sugere que
os efeitos que nessas artes são atribuídos ao ki são na verdade os
efeitos desses fatores combinados. É possível que o ki seja, em
determinadas circunstâncias, precisamente a ação combinada desses
fatores. Incapaz de perceber a existência desses elementos, tampouco a
combinação deles, o indivíduo simplifica suas dúvidas e declara que o
benefício que ele obteve com a prática daquela arte veio do ki. Não digo
com isso que o ki não existe e que, portanto, as bases conceituais de
artes como o Aikido e o Reiki não têm validade. O que quero dizer é que
essas bases são menos importantes do que a prática diligente daqueles
elementos que se combinam e que levam à “manifestação do ki”.
Os exemplos do Aikido e do Reiki serão esclarecedores.
Há
no Aikido, sobretudo no estilo chamado Ki-Aikido, os quatro princípios
de coordenação mente-corpo. São eles: manter o peso na parte inferior do
corpo, relaxar completamente, manter a atenção no tanden (o centro do
corpo, situado cerca de dois dedos abaixo do umbigo) e estender o ki. Os
dois primeiros princípios são princípios do corpo; os dois últimos, da
mente. Manter o peso na parte inferior significa sentir os pés e o chão;
relaxar completamente significa aliviar as tensões musculares
desnecessárias. Manter a atenção no tanden significa ter a consciência
de que ele existe e está lá, assim como sabemos que temos duas orelhas
mesmo sem poder vê-las; estender o ki significa imaginar que uma energia
é produzida em você e chega a um ponto determinado fora de você.
Segundo os praticantes de Ki-Aikido, estes quatro princípios unidos
fazem com o ki flua naturalmente pelo corpo. Com o ki fluindo
naturalmente pelo corpo é possível utilizá-lo na prática das técnicas, o
que as tornaria mais eficientes.
O Reiki, como já se disse,
baseia-se em princípios parecidos com os do Aikido. Não existem técnicas
marciais no Reiki, porque se trata de uma arte de cura direta. Há, no
entanto, cinco princípios em que a prática deve se basear, que são os
lemas do Reiki: “somente hoje não sinta raiva e não fique zangado”,
“somente hoje abandone suas preocupações”, “somente hoje agradeça suas
bênçãos, respeite seus pais, mestres e os mais idosos”, “somente hoje
faça seu trabalho honestamente”, “somente hoje, mostre amor e respeito, e
seja gentil com todos os seres vivos”. Os dois primeiros lemas são
lemas pessoais, referem-se a emoções que o praticante pode sentir e que
deve evitar. Os três últimos referem-se ao mundo ao redor e a como o
praticante se relaciona com ele e se oferece a ele. Esses lemas não
podem ser divididos entre princípios de mente e de corpo, como no
Aikido, mas tentar fazer essa divisão sugere algumas semelhanças.
Nos
dois casos, no Reiki e no Aikido, é clara a importância dada ao
despojamento de tensões (“relaxar completamente” e “não sinta raiva”,
“abandone suas preocupações”). É dada importância fundamental ao
aqui-agora, à noção de que é no presente e exatamente no lugar em que
você está que a ação acontece e os problemas se resolvem: “atenção ao
tanden” e “somente hoje…”. Da mesma forma, é comum a noção de que o
praticante deve oferecer algo bom, com honestidade: “estender o ki” e
“faça seu trabalho”, “agradeça”, “respeite”.
Além disso, existem diversas semelhanças nas circunstâncias em que as práticas ocorrem.
Uma
aula de Aikido ocorre num ambiente limpo, adequado, tão silencioso
quanto possível. Esse ambiente é chamado dojo (“lugar em que se pratica o
caminho”), que em muitos aspectos se assemelha a um templo religioso.
Atenção e dedicação dos praticantes são fundamentais. Reverência e
respeito são necessários e inevitáveis. Os parceiros de treino pedem um
ao outro para treinar juntos a próxima técnica; ao fim, agradecem e
permanecem em silêncio aguardando o sinal do instrutor (sensei) para a
próxima prática.
Ao final da prática do Aikido há um ritual de
agradecimento aos parceiros e ao sensei e recomenda-se manter-se atento a
todos seus movimentos e gestos, de modo a perceber em si mesmo os
efeitos do treino na mente e no corpo.
O Reiki, ao menos no
Ocidente, é praticado em consultórios médicos ou esotéricos. O ambiente
deve ser silencioso, limpo, confortável. O paciente deita-se numa
superfície plana, como uma cama, mas não tão suave ao ponto de fazê-lo
dormir imediatamente. O praticante aplica o Reiki enquanto o paciente
permanece relaxado e de olhos fechados. Como o Reiki pode ser algo
monótono, recomenda-se que o praticante tenha plena consciência do que
está fazendo o tempo todo. Não é necessário imaginar nada, basta apenas
impor as mãos sobre cada ponto do paciente (conforme especificado pela
teoria do Reiki) e manter a atenção no que faz. Música e luz suaves são
bem-vindas.
Ao final da sessão de Reiki não há recomendações
especiais, embora o ambiente em que o Reiki se realiza e seus rituais
convidem o paciente à serenidade e ao equilíbrio emocional.
No
Aikido e no Reiki, grande parte dos benefícios é atribuída ao ki — ao
desenvolvimento, ao domínio, à aplicação e à preservação do ki. Mas
talvez esses benefícios sejam fruto de todos fatores assinalados
anteriormente.
Esses fatores, reunidos, contrapõem-se ao modo de
vida que a maioria das pessoas leva. No dia-a-dia, poucas pessoas têm
oportunidade de perceber o próprio corpo (como no Aikido) ou de
deitar-se especificamente para relaxar e receber os cuidados de outra
pessoa, especialmente capacitada para isso (como no Reiki). As duas
práticas, assim, sempre trarão benefícios enquanto o modo de vida
predominante for aquele que inclui 40 horas de trabalho semanais,
trânsito e poluição, alimentação irregular e respiração idem.
O
Reiki e o Aikido são práticas curativas. O Reiki pelo caminho direto da
cura, da solução de males físicos e emocionais. O Aikido, pelo caminho
das técnicas marciais, como forma de gerenciar e resolver conflitos
internos e externos. Se é verdade que o ki existe também na natureza,
ele não se manifesta de uma forma muito evidente pelo simples fato de
que a natureza não está doente. Doentes estamos nós e é por isso, pelo
contraste, que teremos a impressão de que o ki está operando milagres
quando na verdade estamos simplesmente fazendo coisas boas que não
costumamos fazer, estamos retornando àquela naturalidade física e
emocional tão comum nos bebês.
Bebês normais, como animais
selvagens, árvores e riachos, não precisam de Reiki e de Aikido. Pode
haver sentido, mas não há necessidade de aplicar Reiki neles, assim como
é impossível oferecer-lhes os benefícios do Aikido. Simplesmente não há
diferença entre o que algumas pessoas chamam de “fluxo natural do ki” e
o que todos reconhecem como “corpo relaxado e mente serena”.
Kenshu
Furuya, 6º dan de Aikido, é enfático ao repetir essa mesma idéia. O ki
se manifesta através do corpo, o que nos leva a pensar mais atentamente
na sinonímia entre mente, corpo e ki. Koichi Tohei, fundador do
Ki-Aikido, diz que o corpo é a mente em estado bruto e que a mente é o
corpo em estado refinado, idéia semelhante à de Furuya Sensei.
Não
descarto a possibilidade de que algo diferente e extraordinário possa
acontecer. Eu mesmo já experimentei coisas assim, que são explicadas
unicamente com a palavra “ki”. Ser imobilizado no chão ao contato de um
único dedo sobre meu pulso ou ter um braço aquecido rápida e subitamente
quando uma pessoa toma meu pulso em sua mão são fatos que não podem ser
explicados apenas com “relaxar completamente” ou “faça seu trabalho
honestamente”. Independentemente do que tenham feito, elas estavam
relaxadas e sendo honestas, não tenho dúvidas disso. Se o ki não é
relaxamento e honestidade, o ki está no relaxamento e na honestidade e,
assim, vale a pena manter-se relaxado e ser honesto, assim como vale a
pena seguir os princípios do Aikido e do Reiki e praticar estas e outras
artes de desenvolvimento e utilização do ki, por mais que o discurso
soe esotérico demais para quem, como eu, está habituado a crer apenas
depois de ver.
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